I –
EVOLUÇÃO DO TEMA NA CONSTITUIÇÃO, LEI COMPLEMENTAR E JUDICIÁRIO
A Constituição Federal previu para viger provisoriamente, até
que lei complementar viesse dispor acerca da tributação sobre energia elétrica,
que as empresas distribuidoras seriam contribuintes ou substitutos tributários,
numa ou noutra hipótese, responsáveis pelo pagamento do ICMS por ocasião da
saída da energia elétrica de seus estabelecimentos, englobando desde a produção
até a última operação, tomando por base de cálculo o preço então praticado na
operação final (Ato das Disposições Constitucionais Provisórias, art. 34, §
9º).
A Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir) veio então dar
aplicabilidade à previsão constitucional, estabelecendo que lei estadual
poderia atribuir a condição de substituto tributário (art. 6º, caput) às
empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, desde a produção até
a última operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na
operação final (art. 9º, § 1º, II).
Esses são os fundamentos básicos constitucionais e
complementares que regem o tema energia elétrica e ICMS. No plano legislativo
inferior, o Convênio ICMS 117/2004 foi o responsável pela cobrança desse
imposto sobre valores pagos sob a denominação TUST e TUSD, ao prever que a base
de cálculo seria o montante correspondente à soma dos valores da conexão e
encargos de uso do sistema de transmissão pagos às empresas transmissoras e
quaisquer outros encargos inerentes ao consumo da energia elétrica, ainda que
devidos a terceiros, devendo integrar o montante do próprio imposto.
A energia elétrica é gerada (geradoras: Itaipú Binacional, Furnas,
por exemplo), a corrente de elétrons ingressa em linhas de transmissões e são
distribuídas até o consumidor final. Nessa etapa, há a geração, transmissão e
distribuição. Está-se a cogitar, até aqui, do consumidor final que, ante o
baixo consumo, só tem a opção de adquirir a energia diretamente da
distribuidora (exemplos: Light, Eletropaulo, Elektros). São os consumidores denominados
cativos.
Pode haver, também, a etapa de comercialização, mas nesse caso
enquadram-se os grandes consumidores os quais, ante a potência consumida podem
firmar contratos com comercializadoras no mercado atacadista de energia e com a
empresa de transmissão. Esses são os consumidores livres.
O governo federal autorizou a cobrança, nas contas de energia
elétrica, da Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão
de Energia Elétrica (TUST – Resolução Normativa ANEEL – REN 559/2013) e da Tarifa
de Uso do Sistema de Distribuição de
Energia Elétrica (TUSD), tratando ambas como ressarcimento do custo de
transporte envolvido, calculado com base em critérios fixados pelo poder
concedente (Lei 9.074/1995, art. 15, § 6º).
As contas de energia elétrica de consumidor cativo embutem o
valor da energia propriamente dito, acrescido de uma rubrica (Distribuição)
relativa ao uso da rede de distribuição (TUSD). E as contas do consumidor
livre, indústrias, por exemplo, além da TUSD, acrescem a TUST. Assim, o valor
da conta de energia que remunera a Distribuidora, é um somatório de:
ENERGIA + DISTRIBUIÇÃO (TUSD)
+ TRANSMISSÃO + ENCARGOS + TRIBUTOS
E o que compõe a rubrica tributos?
ICMS sobre a Energia + ICMS
sobre a TUSD + PIS/COFINS + ICMS sobre PIS/COFINS
O que está em discussão atualmente, é exatamente esse ICMS
sobre a TUSD e, nos casos em que couber, ICMS sobre a TUST.
Num caso concreto examinado, apenas o ICMS resultante de sua
incidência sobre essa taxa (TUSD) representou 9,57% do total da conta de
energia, o que não é pouca coisa, em termos percentuais. E muito menos
inexpressivo, ainda, em termos de valores se se considerar 5 anos pretéritos mais
o restante da vida consumindo energia elétrica.
A discussão judicial reinante perante o judiciário
insurgindo-se sobre a TUST/TUSD tem por fundamento o fato de que o ICMS incide
sobre a circulação de mercadoria e não sobre o serviço de transporte
(transmissão) ou sua distribuição.
Examinando as rubricas acima, equivale a concluir que o
consumidor adquire a energia, não a distribuição e a transmissão, de modo que o
ICMS não deveria incidir sobre essas etapas intermediárias, inconfundíveis com
a própria energia adquirida, esta sim considerada mercadoria para efeitos de
incidência do imposto.
Noutro dizer, não incidiria o ICMS sobre o deslocamento da
energia que, na verdade, sequer existe já que os feixes de elétrons estão
permanentemente energizando a rede de transmissão, portanto permanentemente
disponíveis na rede energizada e não em circulação (fato gerador do ICMS), até
serem eles, elétrons, efetivamente utilizados pelo consumidor final, quando
então a energia é transformada em iluminação, calor, frio, força motriz, etc.
O STJ já firmou o entendimento de que os consumidores finais
estão legitimados para pleitear a repetição dos valores pagos indevidamente ao
longo dos últimos 5 anos, a par de serem também detentores do direito de
pleitear a cessação de sua cobrança em relação ao futuro contado do ajuizamento
da ação.
Estima-se que os Estados perderão R$ 14 bilhões/ano de
arrecadação – fala-se até em R$ 134 bilhões a perda total – e, São Paulo,
sozinho, R$ 4,5 bilhões/ano. Cerca de 2 mil ações tramitavam no Judiciário
paulista em março/2017. No Rio de Janeiro são mais de 3 mil ações equivalendo a
R$ 1,4 bilhão/ano. E no Rio Grande do Sul, R$ 1,5 bilhão/ano, podendo vir a ser
compelido a restituir aos consumidores R$ 7,5 bilhões relativos aos últimos 5
anos.
Dada a enorme demanda judicial, já há Incidentes de Resolução
de Demandadas Repetitivas nos Tribunais
de Justiça estaduais de RJ, MG, PR, SC, SP e MS, as quais paralisam o andamento
dos processos por um ano até que a jurisprudência seja firmada em alguma direção,
valendo para todos os casos judicializados.
Até março/2017 o STJ vinha, por suas duas Turmas (1ª e 2ª),
decidindo em favor da tese dos consumidores reconhecendo que TUST/TUSD não
integram a base de cálculo do ICMS. Em 21.03.2017 a 1ª Turma, por maioria de 3
x 2 (vencidos os Ministros Napoleão Maia e Regina Helena Costa), decidiu de
modo contrário, pela incidência do ICMS (REsp 1.163.020). Nesse julgamento o Relator
(Ministro Gurgel de Farias) concluiu que a etapa de transmissão e distribuição
não constituem mera atividade meio, mas atividade inerente ao próprio
fornecimento da energia elétrica, de modo que a TUST (no caso julgado), integra o preço
final da operação e, assim, a base de cálculo do ICMS.
Trata-se especificamente da Randon (fabricante gaúcha de
carrocerias, consumidora do mercado livre) e, naquele caso, foi considerado que
o ICMS deve incidir sobre a TUST ao entendimento de que a base de cálculo do
ICMS abarca todos os custos de geração, transmissão e distribuição, no que foi então seguido pela maioria dos ministros daquela Turma.
Considerando que nas fases de transmissão e distribuição
inocorre a transferência da titularidade jurídica ao consumidor final, o STJ
tem aplicado sua Súmula 166 segundo a qual não constitui fato gerador do ICMS o
simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo
contribuinte.
Obviamente que a titular da rede transmissora e da
distribuidora muito provavelmente não se tratam de uma mesma empresa e, muito menos, o mesmo contribuinte, de modo a
dificultar as justificativas para o cabimento da Súmula 166, mas também parece
evidente que sua invocação se justificaria ante o fato de não haver uma
circulação jurídica nos termos previstos na CF e na LC 87/96, já que contribuintes
(ou substitutos tributários) são as empresas distribuidoras, responsáveis pelo
pagamento do ICMS por ocasião da saída de energia elétrica de seus
estabelecimentos, englobando desde a produção até a última operação, tomando
por base de cálculo o preço então praticado na operação final. Mais sobre isto
será discorrido ao final do presente.
O fato é que os precedentes favoráveis do STJ e dos Tribunais
de Justiça estaduais têm majoritariamente atendido ao reclamo dos consumidores sob o fundamento de que nas fases de distribuição e transmissão da energia
elétrica não se verifica a transferência da titularidade jurídica ao consumidor
final posto que o ICMS somente incide nas operações que envolvem a
comercialização destinada ao consumo pelo consumidor final.
Num desses casos julgados (REsp 960.476/SC), submetido ao rito
dos recursos repetitivos, portanto deverá ser seguido pelos demais tribunais,
firmou-se o entendimento de que o ICMS não é imposto incidente sobre o tráfico
jurídico, não devendo ser cobrado por inincidir sobre celebração de contratos
entre o consumidor e os fornecedores (geração, transmissão, distribuição) na
contratação por demanda de potência elétrica, devendo incidir somente sobre a
energia elétrica efetivamente consumida, de modo que outras rubricas não podem
ser integradas à base de cálculo do ICMS por não constituírem fato gerador
desse tributo.
Como dito, o STJ vinha decidindo pela impossibilidade de inclusão
da TUST/TUSD na base de cálculo do ICMS (Agravo Regimental no REsp 1.135.984/MG;
Agravo Regimental no REsp 1.278.024/MG; Agravo Regimental no REsp 1.408.485 e
Agravo de Instrumento no REsp 1.607.266/MT).
Esse entendimento favorável foi acompanhado por diversos
tribunais estaduais pelo País afora, um desses precedentes, apenas para citar,
proferido pela 5ª Câmara de Direito Público do TJSP (Agravo de Instrumento
2127459-58.2017.8.26.0000) de agosto/2017.
Mais atrás citamos o julgamento do STJ de março/2017 (1ª Turma,
REsp 1.163.020), contrário aos consumidores. Todavia, em 20.04.2017 a 2ª Turma
foi chamada a se manifestar novamente e, contrariamente, manteve por
unanimidade sua posição anterior, afastando o ICMS, fazendo referência ao tal
julgamento da 1ª Turma, de março/2017, concluindo pela inexistência de qualquer
alteração no cenário fático ou no contexto normativo a justificar modificação
na interpretação que, há anos, vinha sustentando as decisões contra o ICMS
pelas duas Turmas.
Nesse julgado de 20.04.2017 a 2ª Turma ainda invocou
dispositivo do novo Código de Processo Civil o qual determina que as alterações
jurisprudenciais devem observar a necessidade de fundamentação adequada e
específica, considerando os princípios da segurança jurídica e da proteção da
confiança e da isonomia (CPC, art. 927, § 4º).
Ante esse impasse, em junho/2017 a questão chegou ao STF para
análise de repercussão geral por meio do tema 956 (RE 1.041.816) e tema 176 de
repercussão geral que versa sobre a incidência do ICMS sobre a demanda
contratada de energia. O STF, vencido o Ministro Marco Aurélio Mello, concluiu
pela natureza infraconstitucional da matéria, devolvendo a análise para o STJ.
Desse modo, há no STJ dois recursos cujos julgamentos deverão ter
caráter vinculante porquanto submetidos à sistemática dos recursos repetitivos:
REsp 1.669.635 encaminhado pelo TJSP (encontra-se sob a relatoria da Ministra
Regina Helena Costa, que já se mostrou favorável à tese dos consumidores no
julgamento dos Embargos no REsp 1.163.020 em março/2017); Embargos de Divergência
opostos no REsp 1.163.020 (relator Ministro Herman Benjamin), cujo
processamento na Corte Especial foi negado.
Espera-se para breve o julgamento de ambos os recursos pela 1ª
Seção, que engloba as 1ª e 2ª Turmas do STJ.
II – NOSSO
ENTENDIMENTO
Realmente é difícil escapar da armadilha conceitual proposta
pelo Secretário-Geral do Sindicato dos Agentes Fiscais de Renda do estado de São
Paulo (Sinafresp), cuja lógica se assenta no seguinte articulado: aceitar a
tese dos contribuintes seria o mesmo que permitir a um consumidor que adquire um
eletrodoméstico se negar a pagar os custos envolvidos no preço final.
Prossegue: imagine um consumidor que vai a uma loja, paga R$ 3 mil por uma TV e
sabe que desse total, R$ 200 foram embutidos a título de gasto de propaganda da
marca. A partir dessa informação, nega-se a pagar o ICMS sobre aquela parcela.
Para então concluir: a situação exemplificada é a mesma em que se assenta a discussão
sobre a ilegalidade na exigência do ICMS sobre a TUST/TUSD (Valor Econômico,
29.03.2017).
A resposta a esse articulado está num aspecto talvez ainda não
cogitado nas discussões levadas ao Judiciário: a natureza jurídica da energia
elétrica, para efeito de tributação pelo ICMS, é mercadoria (Alcides Jorge
Costa in A Constituição Brasileira –
Interpretações, Forense 1988, p. 326). Para o Código Civil trata-se de bem móvel
(art. 83, I)
Entretanto, como é de se notar, adstrita às suas
peculiaridades pois diferentemente de uma mercadoria comum em que pela sistemática
de débito-crédito (denominado “princípio da não cumulatividade”) todas as
etapas da circulação são gravadas pelo ICMS, no caso da energia elétrica esse
imposto só incide por ocasião da saída das distribuidoras, englobando desde a
sua produção (ou geração) até a última operação, tomando por base de cálculo o
preço na operação final (ADCT, art. 34, § 9º).
Utilizando um conceito um pouco mais elástico – por isso mesmo de validade constitucional discutível –, a LC 87/96 incluiu as empresas
geradoras (não previstas na CF) ou distribuidoras (somente estas foram
abarcadas no texto constitucional) de energia elétrica, para estabelecer que o
ICMS incidirá desde a produção até a última operação, sendo o seu cálculo
efetuado sobre o preço final praticado na operação final (art. 9º, § 1º, II).
O ICMS sobre energia elétrica, é prudente lembrar, veio
substituir o imposto único de competência federal sobre energia elétrica
exigido nos termos da CF anterior. E tal qual no perfil constitucional
anterior, preservou a incidência única. O direito de crédito assegurado ao
contribuinte industrial, por exemplo, em relação à energia consumida em seu
processo fabril não desnatura esta conclusão quanto à unicidade de incidência
do ICMS sobre energia elétrica.
Ora, se nos termos constitucionais, nas diversas fases desde a
geração até a distribuição passando pela transmissão o ICMS apenas incide
quando destinada ao consumidor final, o único modo de preservar essa unicidade é
gravando-a uma única vez, na saída para o consumo.
Mas essa conclusão, é bem verdade, não resolve ponto crucial: a
CF e a LC 87/96 dispõem que a base de cálculo é o preço praticado na operação
final, o que em tese abarca todos os custos e despesas. A isso se redargui com a seguinte questão: a que preço final se refere a
CF e a Lei Kandir?
Ora, ora, se conforme preceitua a Constituição Federal a incidência
é única e por ocasião da saída da energia elétrica das distribuidoras para o
consumo final, só pode estar se referindo ao preço da energia elétrica produzida
pela geradora, transmitida pela rede de transmissão e distribuída pela distribuidora
– e, para utilizar uma expressão da moda quando se tratam de auxílios-moradias
e quejandos –, sem qualquer penduricalhos, porque ela é a mercadoria gravada
por incidência monofásica no momento do consumo, tal qual e na mesma monta cobrada
pela geradora.
Anteriormente a isto, tudo o mais é irrelevante para efeito de determinação
da base de cálculo pois, do contrário, equivaleria a que incidência teria lugar
sobre todos os custos de geração e transmissão, além do que, deveria gerar direito
de crédito para a distribuidora, é dizer, em todo o ciclo econômico envolvido,
desde sua geração até o consumo. Pelo contrário, a CF e Lei Kandir foram
expressas no sentido de autorizar a incidência apenas no consumo, e uma única
vez.
Portanto, enfrentando os argumentos capciosamente articulados
pelo Secretário-Geral do Sinafresp, a sua lógica não se revela razoável ao
concluir pela incidência valendo-se de métodos comparativos inaplicáveis na espécie
já que a energia elétrica não encontra paralelo com uma mercadoria comum –
mesmo porque tem a natureza jurídica de mercadoria apenas para fim de incidência
do ICMS posto que sua natureza jurídica,
conforme o Código Civil, como visto, é bem móvel (art. 83, I) e móvel não é sinônimo
de mercadoria, podendo-o ser, ou não. Com efeito, não cabe sua comparação
sequer com eletrodoméstico no qual embutidos, evidentemente, os custos de
fabricação ou TV na qual embutidas despesas com propaganda.
Os argumentos aqui apresentados são válidos tanto para a hipótese
de TUST/TUSD cobradas de consumidor cativo, quanto de consumidor livre, de modo
que tem a virtude de afastar discussões reinantes no meio jurídico a partir da
decisão do STJ, sobre sua aplicação a um ou a outro tipo de consumidor.
Ante todo o exposto é possível vislumbrar vitória dos consumidores,
sejam pessoas naturais (consumidores cativos) e jurídicas (consumidores cativos
ou livres) em mais essa discussão que em nada se assemelha, minimamente, com a
tese da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/COFINS, por sinal, já bem avançada
no STF em favor dos contribuintes. Embora essa tese seja também aplicável às contas de energia elétrica por incidir ICMS sobre PIS/COFINS. Seriam então duas ações, uma estadual, outra federal.
Franco Advogados Associados
20 de março de
2018
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