Em junho de 2018 divulgamos matéria com o título “É crime deixar de recolher o ICMS declarado?” (http://bit.ly/2y6KKeT).
Naquela oportunidade tratávamos do evidente equívoco dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça ao julgar um caso de prisão de empresário de Santa Catarina que havia declarado o ICMS mas não o tinha recolhido, os quais estavam encaminhando sua conclusão pela manutenção da prisão do empresário (HC 399.109).
Faltavam os votos de 6 Ministros do STJ, cujo julgamento foi agora concluído por 6 a 3 em favor da prisão por apropriação indébita. Pena de 6 meses a 2 anos de prisão.
E o equívoco se evidenciava por, de saída, inexistir dolo uma vez que o contribuinte havia declarado o imposto devido. Portanto, não sonegara.
Outro ponto: a Lei 8.137/90, art. 2º, II, dispositivo utilizado pela Procuradoria da Fazenda Estadual catarinense para fundamentar sua tese de ocorrência de crime, trocando em miúdos, dispõe constituir crime deixar de recolher, no prazo legal, ICMS descontado ou cobrado na qualidade de sujeito passivo de obrigação tributária e que deveria ser recolhido aos cofres públicos.
Como exposto naqueles comentários anteriores (http://bit.ly/2y6KKeT), o comerciante, ao vender a mercadoria para seu cliente não desconta, tampouco cobra deste o ICMS. Cobra o preço da mercadoria, base de cálculo do ICMS.
Neste passo, um alerta importante: em direito jamais deve-se confundir os efeitos da prática de atos ou fatos econômicos/financeiros com a natureza jurídica ou a essência do próprio direito. Dito de outro modo, a natureza jurídica das coisas ou seus efeitos jurídicos são analisados exclusivamente sob a perspectiva do direito, não das ciências contábeis, econômicas ou financeiras.
Retomando a afirmação posta no antepenúltimo parágrafo, acima, comprova o truísmo lá posto o fato de o ICMS a ser recolhido pelo vendedor não ser exatamente aquele determinado mediante multiplicação da alíquota cabível pela base de cálculo (preço da mercadoria fornecida ao seu cliente). O ICMS a ser recolhido no mês é determinado após o confronto entre o estoque de débito e o estoque de crédito, no período mensal de apuração.
Ou seja, não se comparam créditos e débitos individualizadamente considerados, senão o conjunto de operações realizadas no período mensal de apuração.
O STJ vem, há anos, decidindo em linha com o princípio da execução menos gravosa ao devedor, fundamentado no CPC/1973, art. 620 e no CPC/2015, art. 805. Se é esse o entendimento em matéria de direito patrimonial (execução), com muito mais razão deveria sê-lo no que tange à privação de liberdade.
Do contrário, a prisão por dívida agora decidida pelo STJ nega toda a construção jurisprudencial solidificada no seu âmbito ao longo do tempo.
O que deverá ocorrer a partir desse precedente é que o contribuinte que requeria ao juízo criminal aguardar a decisão judicial (esta no âmbito da execução fiscal) para então, se contrária, decidir-se pelo parcelamento da dívida antes da decisão criminal, agora não mais poderá contar com esse expediente.
Isto porque os Ministérios Públicos estaduais, com esteio nesse precedente do STJ passarão a requerer, com boa chance de êxito, a antecipação do julgamento criminal à decisão da execução fiscal.
Com esse expediente forçarão o contribuinte ao pagamento ou parcelamento. E, se a decisão na execução fiscal se mostrar posteriormente favorável à tese do contribuinte, este terá que promover outra ação (repetição de indébito) para buscar de volta o que pagou, a final, indevidamente.
Ocorre que se tiver pago no âmbito de parcelamento especial (Refis, ou seu equivalente estadual) o tributo judicialmente discutido, não terá como repeti-lo porque nesses parcelamentos há, em geral – sem base jurídica alguma, mas mesmo assim utilizada à exaustão –, cláusula que trata o parcelamento como confissão de dívida irrevogável e irretratável! E o Judiciário, em geral, cai nesse engodo!
Dentro desse enfoque, esse terrível precedente do STJ poderá ser barrado pelo STF com fundamento na Súmula Vinculante 24 deste e em seus desdobramentos:
“Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, inciso I, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Pode-se alegar que a Súmula Vinculante 24 STF está adstrita ao art. 1º, I, da Lei 8137/90 e o julgamento ora concluído pelo STJ, ao art. 2º, II da mesma lei. Entretanto, art. 1º e 2º estão a dispor, ambos, sobre crime contra a ordem tributária.
O caput do art. 2º diz constituir crime da mesma natureza (refere-se ao art. 1º). Ambos são crimes materiais, em relação aos quais exige-se, para o enquadramento penal, o resultado. Sendo de resultado, primeiramente há de se confirmar devido o tributo. E se é um crime de resultado, há evidente interdependência entre esfera administrativa e penal.
No julgamento do HC 81.321-6-SP, de 03.07.2003, o ex Ministro Cezar Peluso fundamentou a concessão de liminar, dentre tantos, na Lei 9249/95, art. 34, que dá ao contribuinte a prerrogativa de pagar o tributo e acessórios, se devidos, antes da denúncia, para ver extinta a punibilidade dos crimes descritos nos artigos 1º e 2º da Lei 8137/90.
Ou seja, a Súmula Vinculante 24 assegura ao contribuinte o direito de aguardar a decisão administrativa para confirmar ser o tributo devido. E a Lei 9249/95, art. 34, autoriza o pagamento do principal mais acessório, antes da denúncia.
Com o advento da Lei 10684/03, art. 9º, este cenário foi modificado já que passou a ser extinta a punibilidade dos crimes previstos na Lei 8137/90, arts. 1º e 2º, mesmo quando o contribuinte efetuar o pagamento após o recebimento da denúncia pelo juízo criminal. Embora seu alcance sejam os tributos federais e Previdência Social, pode-se questionar tais limitações à luz do princípio da isonomia, estendendo seus efeitos ao ICMS.
Em suma, a extinção da punibilidade aplica-se aos tributos federais, inclusive aos estaduais ou municipais, ainda quando parcelados, cuja suspensão, antes de operada a extinção permanece em vigor até o efetivo cumprimento do parcelamento. Quando pagos à vista, extingue a punibilidade mesmo que a denúncia crime já tenha sido recebida pelo juízo criminal (STF HC 91.929-0/RJ, Ministro Sepúlveda Pertence, acórdão, Ministro Cezar Peluso, 16.12.2003).
Esta realidade jurisprudencial construída ao longo dos anos não será modificada pela nova decisão do STJ, espera-se, ainda mais porque, nos termos do art. 926 do CPC, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Esta realidade jurisprudencial construída ao longo dos anos não será modificada pela nova decisão do STJ, espera-se, ainda mais porque, nos termos do art. 926 do CPC, os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
Franco Advogados Associados
27 de agosto de 2018
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Nota importante: Em 9 de dezembro de 2020 o STF analisou, em conjunto, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.881, 5.886, 5.890, 5.925, 5931 e 5.932, que buscavam o julgamento das regras da Lei 13.606/18 que permitiam ao fisco, sem autorização judicial, tornar indisponíveis imóveis ou veículos de contribuintes inscritos na Dívida Ativa, cuja conduta já havíamos antecipado ser inconstitucional. (vide-as em http://bit.ly/2G8BtDi e http://bit.ly/2H6begK)
Nessa decisão agora ocorrida o STF, por 7 a 4, permitiu o registro da informação sobre a inadimplência, em cartório, para proteger terceiros.
Interessante notar que, no mérito dessa decisão, prevaleceu o entendimento: "O Estado não pode se valer de meios indiretos de coerção". Chama a atenção essa conclusão ante sua gritante contradição com o entendimento dos membros daquela mesma Corte Suprema depois que o próprio STF já sentenciou, em 2019, que o comerciante que cobra o ICMS de seu cliente e não o repassa aos cofres públicos pode ser preso! A prisão não seria, por si mesma, meio indireto de coerção?